08 agosto 2017

"transexual"

Na empresa onde trabalhei nos anos 90 havia um colega que se vestia como um homem, mas com adereços femininos: o cabelo comprido apanhado em rabo-de-cavalo, o colar de pérolas a espreitar dentro do colarinho da camisa aberto, os sapatos luva (muito pouco comuns entre homens, na Alemanha).
Soube depois que estava a fazer todo o processo para transformar o seu corpo. Em determinado momento mudou oficialmente: deixou de ser Peter, passou a ser Hilde, e passou a usar uns vestidos camiseiros confortáveis e elegantes.
Uma amiga minha, que participou numa viagem de fim-de-semana do departamento da Hilde, contou-me que gostou imenso de conversar com ela. Eu imaginava, com estranheza, a Hilde, que eu conhecera como Peter, a dormir nas camaratas femininas, a frequentar as casas de banho femininas. Precisei de algum tempo para perceber que o estranho era a Hilde ter passado tantos anos a frequentar camaratas e casas de banho masculinas.

Este fim-de-semana houve outra vez "colónia de artistas" num palácio perto da Polónia. Como de costume, no serão de sábado vimos juntos um filme, e desta vez escolheram "The Danish Girl". Dormi mal, porque a Lili do filme passou a noite a acordar-me para me lembrar a angústia de estar mal no próprio corpo e o sofrimento dos perseguidos pela sociedade.
No regresso para Berlim trouxemos uma amiga, e falámos sobre o filme. Em menos de nada o tema passou para um projecto de fazer casas de banho públicas com três categorias: homem/mulher/transexuais. Ela dizia que isso é caríssimo e que há outros problemas mais prioritários. Eu argumentava que há uma maneira bem mais fácil de resolver esse problema (que não atinge muitas pessoas, mas as faz sofrer muito): mudar as placas das casas de banho - em vez de homem/mulher, passa a ser com urinol/sem urinol. Ela retorquia que gosta de ter uma certa privacidade na casa de banho, e não haver nenhum homem por perto quando está a dar um retoque na maquilhagem. Disse que se sentia devassada.
Foi então que me lembrei da Hilde, que teve a sua vida devassada até aos trinta anos: permanentemente invadida, vigiada, criticada. Na casa de banho, em casa, na rua.

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Na Berlinale de 2017 vi dois filmes ligados a este tema. Repescando os posts que escrevi na altura:

1.
Karera ga Honki de Amu toki wa (Close-knit), de Naoko Ogigami, é um filme sobre questões de transgénero para principiantes. No Japão só agora se começa a falar nestes temas, pelo que a transexual apresentada é uma pessoa perfeita, amorosa, maravilhosa, tudo de bom.
Paciência. O cinema japonês fará o seu caminho, e daqui a uns anos apresentará transexuais normais, com direito à imperfeição dos humanos.
Close-knit é um filme doce, de uma simplicidade quase pedagógica, absolutamente encantador. Permite reduzir as questões de transgénero e homossexualidade à essência das relações: amor, respeito, empatia. E mostra como tudo pode ser simples, se aceitarmos as pessoas em vez de as tentarmos ajustar à medida dos espartilhos morais.


2.
Bones of contention, de Andrea Weiss. Um documentário sobre as atrocidades do regime franquista, em particular contra os homossexuais, e sobre o debate em curso na sociedade espanhola que opõe a necessidade de fazer o trabalho da História ao pavor de se confrontar com ela.
Partindo de Federico García Lorca - a pessoa, a sua poesia e o mistério do seu corpo desaparecido - o filme informa sobre terríveis crimes cometidos nesse período negro da História de Espanha, o modo como permaneceram muito para além da morte de Franco e o papel do silêncio no insidioso prolongamento das injustiças e das ofensas à dignidade humana.
Uma passagem particularmente curiosa é a conversa entre uma lésbica e um homossexual sobre o que é mais doloroso: a perseguição, a prisão, a tortura e os choques eléctricos para curar a homossexualidade (o que o regime fazia aos homens) ou a condição de inexistência absoluta (reservada às lésbicas - que pura e simplesmente não existiam).
Outra passagem muito interessante é quando falam de uma manifestação que organizaram. Os transexuais pediram para participar, mas a princípio os gays e as lésbicas não queriam. Depois acabaram por concordar, e os transexuais apareceram na linha da frente. Na hora em que a polícia carregou, foram os mais corajosos.
Cada um pense na razão para essa coragem. Eu vou por Brecht: "mas ninguém diz violentas / as margens que o oprimem".
 

1 comentário:

Anónimo disse...

Um dia, talvez, viveremos no mundo doce do Close-Knit, :). Gostarei desse mundo. E, concordo mais consigo quanto às casas de banho, as três categorias é alimentar os estigma.