16 novembro 2017

"contra a doença do politicamente correcto" (3)

Retomo (pela antepenúltima vez, prometo) o exemplo do  artigo de Bárbara Reis no Público, com o título "contra a doença do politicamente correcto", no qual se suja propositada ou inadvertidamente a água da banheira para poder deitar fora tudo o que está dentro, fechando os olhos com muita força para não ver o bebé que também lá estava.

Este post é sobre o fenómeno de fechar os olhos com muita força.

O artigo começa assim: Este Verão, engasguei-me a rir com o alerta da Unidade para a Igualdade e a Diversidade da Universidade de Oxford, que começou por dizer ao staff que não olhar os alunos olhos nos olhos podia ser racismo e, a seguir, anulou o aviso por se ter esquecido de que as pessoas com autismo não conseguem olhar olhos nos olhos e que seriam, portanto, discriminadas.


Pergunto-me como é possível escrever um texto contra o politicamente correcto que começa por referir que em 2017 foi necessário avisar o staff de uma universidade inglesa que se deve olhar todos os alunos nos olhos, independentemente da cor da sua pele. Pergunto-me como é possível uma pessoa "engasgar-se a rir" perante estes sinais de racismo.

O texto continua assim:

Caminhamos para uma sociedade que aceita e promove a censura e que, entretida a inventariar “microagressões” (...)

Um professor ou um funcionário de uma universidade que não olha um determinado aluno nos olhos devido à cor da sua pele é uma micro agressão. "Apenas" uma das milhentas humilhações a que algumas pessoas são sistematicamente sujeitas durante toda a sua vida, do parque infantil ao lar de terceira idade, perpetradas por uma maioria autocentrada que nem sequer se dá conta do mal que lhes faz. E Bárbara Reis entende que chamar a atenção para esses comportamentos é passar ao lado do que é realmente importante. 

A newsletter da universidade de Oxford dava outros exemplos de micro agressões, tais como perguntar a uma pessoa de onde é que ela vem. Não sei como é em Portugal, mas na Alemanha é extremamente comum: se uma pessoa tem a pele ligeiramente mais escura que o considerado normal no país, a primeira pergunta que lhe fazem é de onde vem, ou se entende alemão. Uma pergunta que não tem más intenções, mas faz muito mal a quem a ouve, porque lhe confirma e repete à exaustão que basta uma pequena diferença na cor da pele para todos à sua volta partirem do princípio de que é um elemento estranho a essa sociedade. Aliás, a própria formulação "cor de pele diferente do normal" aponta já para a condição de "anormalidade" na vida da pessoa.

É preciso ter muita vontade de não ver para considerar que isto são detalhes sem importância. E é preciso uma boa dose de cinismo para chamar "geração snowflake" a quem quer questionar e desinstalar comportamentos enraizados que provocam sofrimento às pessoas dos grupos minoritários.

Em contrapartida, não custa muito repensar os hábitos e mecanizar outros comportamentos: olhar para todas as pessoas nos olhos (excepto se forem autistas), dirigir-se a elas na língua do país onde estão (elas avisarão, se não entenderem), evitar a pergunta sobre a sua origem (a não ser que seja realmente óbvio que se trata de um estrangeiro), evitar usar com sentido depreciativo palavras associadas a minorias (frases como "és mesmo judeu!", "não sejas maricas!", "isto tem classe, não é para pretos", "pareces atrasado mental", entre outras, podem perfeitamente ser trocadas por "és mesmo sovina", "não sejas medroso", etc.).

Não custa muito. Mas - como no artigo do Público que tenho estado a referir - há quem prefira pegar em exemplos muito mal contados para ridicularizar e rejeitar o enorme esforço em curso para que a sociedade tome consciência do que há discriminatório nos seus hábitos.


O que é que move estas pessoas, afinal? Porque será que se sentem ameaçadas na sua liberdade quando lhes chamam a atenção para o facto de provocarem sofrimento a outros? Porque é que temem o esforço de tratar as minorias com o mesmo respeito que é devido a todos os seres humanos? 

E porque é que os privilegiados reclamam para si o direito de dizer o que lhes apetece, mas depois se armam em vítimas se são confrontados com o que disseram e com a carga de agressão do que disseram? Como é possível chamarem "snowflakes" às pessoas que acusam a ofensa, e ao mesmo tempo não quererem ser ofendidos pela crítica que lhes é dirigida?
Quem é o "snowflake", afinal?

Mais perguntas: o que leva pessoas que pertencem à maioria, e que por isso mesmo têm a vida mais facilitada, a fazer o discurso da auto vitimização "ai, que maçada, já não se pode dizer nada porque  está-se sempre a ofender alguém"? O que é que têm de tão importante para dizer, que tem realmente de ser dito, mesmo que faça sofrer pessoas com outra cor de pele, ou com deficiência, ou de determinada etnia, ou de determinada orientação sexual?


Nada disto faz sentido. Mas se olharmos por outra perspectiva, as peças começam a encaixar:

Sabemos que a extrema-direita dos EUA criou toda uma retórica no espaço público, alimentada também pelas fake news, que reforça a ideia de que as minorias estão a conquistar o "espaço vital" (usei a expressão propositadamente) da maioria. Sabemos que a Rússia inundou as redes sociais americanas com mensagens combativas tanto para a extrema-direita como para a esquerda e os grupos de luta pelos direitos civis, com o objectivo de polarizar e desestabilizar ainda mais aquela sociedade (podem ver aqui alguns dos posts russos lançados nas redes sociais dos EUA para influenciar as eleições presidenciais de 2016).

É certo que o "politicamente correcto" muitas vezes cai em exageros que não ajudam à sua causa. Mas fechar com toda a força os olhos para não ver a justeza dessa causa, e abri-los para ver apenas os exageros (e as fake news que deturpam os factos para melhor servir o discurso extremista) é fazer o jogo de quem está a orquestrar uma campanha para destruir a paz social e atacar a Democracia.

No artigo de Bárbara Reis, o mais assustador é saber que uma antiga directora de um dos diários mais importantes de Portugal se deixou apanhar na armadilha das fake news ao serviço de um discurso que recusa reconhecer os problemas quotidianos ligados à condição das minorias. E, se querem saber tudo, também é assustador que eu tenha escrito ao director do jornal, alertando-o para o facto de no Público estarem a passar fake news como se fossem mesmo factos, e ele nem se tenha dado ao trabalho de me responder, quanto mais ao de fazer uma adenda ao texto da Bárbara Reis, que - a esta data - já foi partilhado 4179 vezes.

Tenho a certeza que a Bárbara Reis não fez por mal. Mas um jornal como o Público, se não quer passar a fazer o jogo do Breitbart News, tem de se esforçar mais para fazer bem.

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Adenda, para os mais interessados neste tema:

Political correctness: how the right invented a phantom enemy

2 comentários:

jj.amarante disse...

As críticas ao "Politicamente Correcto" são umas boas e outras más.

Depois da REN ser parcialmente alienada a instituições de estados estrangeiros tivemos uma sessão sobre usos e costumes praticados pelos chineses e no Oman. Constatei aí um problema, enquanto para os chineses olhar nos olhos era considerado agressivo e indelicado (existe algum fundamento para isto, os carnívoros olham a presa antes de a atacar) os do Oman consideravam que quem não os olhava olhos nos olhos, como por exemplo o nosso ex-presidente Cavaco Silva, não era de confiança (e também terão motivo para isso, é mais difícil mentir quando se olha olhos nos olhos segundo a sabedoria popular portuguesa). Espero não me ter enganado nas preferências dos dois países mas daqui concluo e generalizo que será provável que existam incompatibilidades nos costumes dos estrangeiros que nos visitam.

O melhor será usarmos as nossas regras de cortesia.

Helena Araújo disse...

Penso que o melhor será:
- por cortesia, estarmos atentos à realidade dos outros para sabermos o que é importante para eles (sim, ainda agora coro de vergonha ao lembrar-me daquela vez que me assoei ruidosamente durante um almoço com japoneses)
- tratarmos todas as pessoas com igual respeito (que, no caso tratado no início da crónica em questão, significa olhar para uma pessoa de pele escura da mesma forma que se olha para uma pessoa branca, e evitar o contacto do olhar se soubermos que é autista)
- em caso de dúvida, sermos muito bem-educados à maneira da nossa cultura.